sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Ateísmo e (a)/(i)moralidade - 1


Uma introdução


Seguidamente nos encontramos com pessoas ― crédulas, por motivos óbvios ― de que ateísmo relaciona-se com amoralidade ― definamos: uma base de um pensar isento de moral ― ou imoralidade ― um comportamento conduzido ao mal, por assim dizer.



Observação: Tenho hoje confiança que não pode existir argumentação mais preconceituosa e dogmática do que essa, e dificilmente se encontra uma mais perigosa, e que suplanta em minhas preocupações as posições criacionistas.



Quanto à amoralidade, seria algo como o conhecimento científico, matemático ou filosófico digamos “puro”, de estudo e modelagem do mundo, de análise da linguagem, do pensar o mundo e os dilemas do homem, inclusive no comportamento moral, e aqui já temos uma pista de um erro (para analisar-se o que seja moral, deve-se usar olhos desprovidos de uma ‘pré-conceitualização’ do que seja moral).


Por motivos que me parecem muito claros, a Matemática e as diversas construções lógicas são essencialmente amorais, pois por exemplos até irônicos, não me parecem constituídos de um objetivo que se caracterize de bondade ou maldade a infinitude do conjunto dos números primos ou os trios de números inteiros pitagóricos relacionados ao teorema dos triângulos retângulos.


O próprio estudo do comportamento dos animais, como os leões machos que matam filhotes de uma ninhada de um concorrente anterior, na Etologia, no estudo dos comportamentos animais, dentro da Zoologia, e esta dentro da Biologia, todos campos científicos, Ciência ― aquela que deve ser escrita com letra inicial maiúscula ― é isento de uma análise moral, logo amoral. A moral existe no homem estudando e tratando o leão, mas não num julgamento sem sentido de ética humana (e o pensar que é a Ética, e não há até o momento outras) para com o comportamento do leão.


Por um exemplo filosófico, podemos tratar na Filosofia da Mente dos mecanismos mais profundos propostos para o comportamento dito mau, voltado ao mal, por assim dizer, imoral, como ― exemplo destacado: os assassinos seriais ― e embora possamos obviamente fazer o julgamento desses atos como insanos (não propriamente maus), obviamente julgamos como prejudiciais e claramente inaceitáveis sob qualquer ponto de vista, mas a análise em si dos motores mentais desses atos não pode ser conduzida por uma moralidade, e é, como se diz, feita de maneira fria e isenta, pois o objeto e sua análise não são passíveis de uma influência de moralidade, ainda que nos moldes análogos ao tratamento ao leão anteriormente citado na Etologia, o tratamento ao psicopata ou criminoso serial tenha de por moralidade ser conduzido de maneira ― perdão pela redundância ― moral. 


A própria estrutura e evolução da sociedade com o tempo e seu processo civilizatório conduziram ao tratamento aos presos e apenados ter códigos dentro do que chamamos de uma moralidade, construindo um ética (que deve sempre ser distinta da Ética como campo filosófico, que novamente por si é amoral nas suas análises, muitas vezes, vinculadas, como sabemos pelos dilemas morais, às necessidades e aos tempos).


Podemos acrescentar que a mente infantil, até certa idade, é desprovida de moral, e portanto, a mente humana basicamente “descarregada” de cultura pode ser dita amoral, ainda que lá estejam, sabemos pela Psicologia, diversos comportamentos etológicos humanos de solidariedade, amabilidade e outros comportamentos fundamentais de nossa vida grupal como espécie, que posteriormente com a carga de cultura vão constituir o comportamento moral (ou não, observemos os diversos criminosos apenas como exemplo mais direto, e até os relatos de históricos a bíblicos nos serviriam de alicerce).


Citemos:


“[...] explicar como a partir do mundo amoral da criança pequena é possível ao homem agir eticamente [...] ” [Freitas]


Porém, quando vamos aos termos imoral e imoralidade, temos que aquilo que julgamos contrário a uma moral, como os clássicos “universais” de Kant, já apresentam seus dilemas frente à mentira que pode poupar vidas, ou nas guerras morais, a necessidade de matar-se para sobrevivência, e daí chegamos ao bem que é determinado pelos mais fortes, na sua vontade e seu triunfo, como bem estabelecido por Nietzsche e outros pelo século XIX, ou ainda, como valores da classe dominante, as variações dos costumes no tempo ou no espaço, como o também clássico exemplo da poligamia, que depende normalmente de princípios religiosos.

Por esses motivos que o termo imoral, o contrário à moral determinada num tempo e espaço, segundo a o conjunto de costumes e necessidades, depende da moral determinada no conjunto de seus princípios determinados para aquela sociedade, na construção de sua ética específica.

Para um exemplo que julgamos máximo, a ética de determinadas sociedades pode considerar o beber em calçadas algo passível de multa, prisão ou processo penal, enquanto outras podem considerar isso algo irrelevante, mas tratarem o que para as anteriores são pessoas ditas “menores” quanto a uma idade para processo penal em distintos valores, e considerar que até uma criança já alfabetizada pode ser responsabilizada por seus atos. O exemplo da pena de morte para determinados crimes é marcante, assim como condenações perpétuas após certo número de crimes ― mesmo pequenos ― medidas que são consideradas imorais para certas sociedades. Diversos aspectos do Direito Penal tem berço muitas vezes em certos princípios religiosos. O comportamento das sociedades quanto à prostituição é outro exemplo, e profundamente ligado à percepção de liberdades sobre o próprio corpo e costumes da sociedade em questão. [Oliveira & Galli] [ROBERTS]  


A ótica moral (sempre oriunda de uma ética, esta conjunto de valores) das civilizações em lidar com outros povos pode flutuar em avaliações sobre determinados aspectos, e podemos citar duas frases exemplares legadas pela História: “índios mansos, vivendo de forma paradisíaca, de acordo com a lei natural" e “são cães em se comerem e se matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem".[Multirio] 


Desses discursos filosóficos que chega-se à conclusão inescapável que a moral é relativa, e não há qualquer escape. Chegamos inclusive a poder afirmar que não há questão moral que não possa ser flagelada pelo confronto com um dilema moral proposto, fazendo com o que seja considerado imoral num tempo e espaço, noutros, com certas necessidades, possa ser necessário, e visando a sobrevivência de todos, ou o bem de uma bem clara maioria (uma certa relação com os universais de Kant e seus raciocínios, agora desnudados de uma transcendência do que seja a moral ― logo sem um absoluto ― sem um imperativo categórico), numa nova / então atualizada “classe dominante”. 


Adiante, faremos o tratamento do ateísmo e religiosidade e sua desconexão com o que seja o comportamento moral humano, seja individual, seja de grupo, seja de toda a sociedade de uma nação ou região sob influência de uma certa religiosidade específica. 

 

Referências

 

Freitas, Lia Beatriz de Lucca. (1999). Do mundo amoral à possibilidade de ação moral. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12(2), 447-458. - www.scielo.br   

 

Multirio - O índio no imaginário português - multirio.rio.rj.gov.br    

 

Oliveira, Tauane de; Galli, Tiago. A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO EM RELAÇÃO A TEMAS MORAIS CONTROVERSOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO E O PRINCÍPIO DA LAICIDADE. Revista Jurídica Direito e Cidadania na Sociedade Contemporânea. v. 1, n. 1 (2017). - revistas.fw.uri.br   


ROBERTS, Nick. As prostitutas na história. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1998.

 

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