terça-feira, 20 de abril de 2021

Ateísmo e (a)/(i)moralidade - 2

 

Feita anteriormente a apresentação de alguns fundamentos da moralidade, da imoralidade e da amoralidade, tratemos de pontos da falácia de associação indevida apresentada.



(Uma das maiores tragédias em toda a história da humanidade 

pode ser que a moralidade foi sequestrada pela religião.)



Pontos diretos, oriundos de um antigo e até nervoso debate:


1) Ateísmo não tem relação direta alguma com um comportamento imoral, sequer, correspondentemente, há uma relação inquebrantável entre moralidade e qualquer vertente do cristianismo, ou ainda qualquer religião, seja monoteísta, seja das diversas outras naturezas das religiões existentes.


2) Sempre cuidado com frases de autores tiradas do contexto, normalmente, acaba em distorções lamentáveis. Pior ainda se acrescentadas interpretações de determinadas questões que conduzem a um discurso que afirma que o ateísmo, naturalismo ou o materialismo leva à imoralidade.


Um exemplo que já assisti é a frase:


"A natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente. Essa é uma das lições mais duras que os humanos têm de aprender." - Richard Dawkins


O raciocínio construído foi que se para um ateísta o homem faz parte da natureza, ele tem de ser então indiferente, e sabendo nós que a indiferença frente ao sofrimento alheio é um mal no comportamento humano, o humano teria de consequentemente ser mau.

A falácia mais que grosseira está em que “na natureza” tratamos de explosões de supernovas que podem levar à extinções até os muito mais comuns vulcanismos ou o comportamento dos predadores, entre inúmeros exemplos, mas não o comportamento humano, que constrói uma ética, e essa é desprovida de religiosidade como peça fundamental.


3) Dilemas morais e certas questões filosóficas, como "o ato dito hoje mau amanhã poderá ser o ato necessário" são transcendentes à questões religiosas, quase sempre, conduzindo a dilemas morais irresolvíveis, como o clássico "não mentir vs não matar".


Como são questões a ser tratadas por lógica deôntica, de ponderações de valores e julgamentos (que são de valores morais) não podem ser resolvidos nem de perto por afirmações dogmáticas, tão características das religiões.


Lembrete fundamental: Ateísmo não é de forma alguma correlato com imoralidade, assim como jamais o religioso pode ser amalgamado com moralidade, pois o humano não pode ultrapassar o que o humano é. “Nada no humano suplanta o humano.”


Até porque sequer o afirmar-se religioso seja correlato com o afirmar-se teísta, ou mesmo deísta, vide determinadas correntes do Budismo e do código moral que é o Confucionismo.



Extras


1


O dilema “mentir e não matar”


“Imagine o seguinte caso. Uma pessoa está fugindo de um assassino e pede para se esconder em sua casa. Você aceita e logo em seguida chega o assassino e pergunta se você não viu a pessoa que acabou de esconder. O que você deveria fazer? Mentir para o assassino, dizendo que a pessoa não se encontra ali, ou falar a verdade?


A maior parte das pessoas diria: devemos mentir para salvar uma vida. Porém Immanuel Kant (1724-1804), um dos maiores filósofos da história, pensa que deveríamos falar a verdade, inclusive nesse caso. Naturalmente, o que fez com se tornasse conhecido e respeitado não foi apenas defender essa resposta que vai contra o senso comum. Ele tinha uma teoria moral bastante sofisticada para dizer isso.” - filosofianaescola.com - A mentira segundo Kant 


Uma análise muito mais completa do discurso filosófico de Kant pode ser visto em: 


Maria José da C. Souza Vidal. Sobre o problema da mentira na filosofia prática de Kant. Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia das Universidades Federal do Rio Grande do Norte/ Federal da Paraíba e Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Filosofia. Natal – RN, março de 2015. 


2


O dilema do “estupro necessário”


Imaginemos um cenário de ficção científica distópica, catastrofista, na qual um vírus tenha afetado o cérebro de todas as mulheres do planeta de maneira que elas tenham repulsa por sexo heterossexual e gravidez.

Consideremos que uma tecnologia de gestação in vitro não estivesse desenvolvida.


Uma condição hipotética dessas levaria a humanidade inexoravelmente à extinção. (Claramente um “universal de Kant”.)

Uma observação: um cenário similar de extinção inexorável pela incapacidade de reprodução das mulheres é apresentado no filme distópico Filhos da Esperança (Children of Men, 2006), dirigido por Alfonso Cuarón, mas saliente-se que ali não há uma modificação mental do sexo feminino, e sim uma incapacidade biológica que o roteiro deixa em aberto a natureza e causas. 


Assim, voltando ao nosso cenário hipotético, seria necessária a fertilização de mulheres, digamos “forçadamente”, a manutenção vigiada de sua gravidez, até sob efeito de sedação, para prover a humanidade de uma escala de nascimentos visando manter nossa existência como espécie até o momento do desenvolvimento necessário de uma capacidade de reprodução humana artificial, o cenário da reprodução humana de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Dependendo da definição do termo, aqui temos a clara necessidade do estupro, além do acréscimo da perda da liberdade pelo bem maior.

Um cenário similar, ainda que com nuances por um lado mais drásticas, de uma sociedade desigual, escravagista e totalitária é apresentado no universo ficcional do romance distópico The Handmaid's Tale, no Brasil “O Conto da Aia” de 1985 da autora canadense Margaret Atwood, que rendeu uma versão em série de TV.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Ateísmo e (a)/(i)moralidade - 1


Uma introdução


Seguidamente nos encontramos com pessoas ― crédulas, por motivos óbvios ― de que ateísmo relaciona-se com amoralidade ― definamos: uma base de um pensar isento de moral ― ou imoralidade ― um comportamento conduzido ao mal, por assim dizer.



Observação: Tenho hoje confiança que não pode existir argumentação mais preconceituosa e dogmática do que essa, e dificilmente se encontra uma mais perigosa, e que suplanta em minhas preocupações as posições criacionistas.



Quanto à amoralidade, seria algo como o conhecimento científico, matemático ou filosófico digamos “puro”, de estudo e modelagem do mundo, de análise da linguagem, do pensar o mundo e os dilemas do homem, inclusive no comportamento moral, e aqui já temos uma pista de um erro (para analisar-se o que seja moral, deve-se usar olhos desprovidos de uma ‘pré-conceitualização’ do que seja moral).


Por motivos que me parecem muito claros, a Matemática e as diversas construções lógicas são essencialmente amorais, pois por exemplos até irônicos, não me parecem constituídos de um objetivo que se caracterize de bondade ou maldade a infinitude do conjunto dos números primos ou os trios de números inteiros pitagóricos relacionados ao teorema dos triângulos retângulos.


O próprio estudo do comportamento dos animais, como os leões machos que matam filhotes de uma ninhada de um concorrente anterior, na Etologia, no estudo dos comportamentos animais, dentro da Zoologia, e esta dentro da Biologia, todos campos científicos, Ciência ― aquela que deve ser escrita com letra inicial maiúscula ― é isento de uma análise moral, logo amoral. A moral existe no homem estudando e tratando o leão, mas não num julgamento sem sentido de ética humana (e o pensar que é a Ética, e não há até o momento outras) para com o comportamento do leão.


Por um exemplo filosófico, podemos tratar na Filosofia da Mente dos mecanismos mais profundos propostos para o comportamento dito mau, voltado ao mal, por assim dizer, imoral, como ― exemplo destacado: os assassinos seriais ― e embora possamos obviamente fazer o julgamento desses atos como insanos (não propriamente maus), obviamente julgamos como prejudiciais e claramente inaceitáveis sob qualquer ponto de vista, mas a análise em si dos motores mentais desses atos não pode ser conduzida por uma moralidade, e é, como se diz, feita de maneira fria e isenta, pois o objeto e sua análise não são passíveis de uma influência de moralidade, ainda que nos moldes análogos ao tratamento ao leão anteriormente citado na Etologia, o tratamento ao psicopata ou criminoso serial tenha de por moralidade ser conduzido de maneira ― perdão pela redundância ― moral. 


A própria estrutura e evolução da sociedade com o tempo e seu processo civilizatório conduziram ao tratamento aos presos e apenados ter códigos dentro do que chamamos de uma moralidade, construindo um ética (que deve sempre ser distinta da Ética como campo filosófico, que novamente por si é amoral nas suas análises, muitas vezes, vinculadas, como sabemos pelos dilemas morais, às necessidades e aos tempos).


Podemos acrescentar que a mente infantil, até certa idade, é desprovida de moral, e portanto, a mente humana basicamente “descarregada” de cultura pode ser dita amoral, ainda que lá estejam, sabemos pela Psicologia, diversos comportamentos etológicos humanos de solidariedade, amabilidade e outros comportamentos fundamentais de nossa vida grupal como espécie, que posteriormente com a carga de cultura vão constituir o comportamento moral (ou não, observemos os diversos criminosos apenas como exemplo mais direto, e até os relatos de históricos a bíblicos nos serviriam de alicerce).


Citemos:


“[...] explicar como a partir do mundo amoral da criança pequena é possível ao homem agir eticamente [...] ” [Freitas]


Porém, quando vamos aos termos imoral e imoralidade, temos que aquilo que julgamos contrário a uma moral, como os clássicos “universais” de Kant, já apresentam seus dilemas frente à mentira que pode poupar vidas, ou nas guerras morais, a necessidade de matar-se para sobrevivência, e daí chegamos ao bem que é determinado pelos mais fortes, na sua vontade e seu triunfo, como bem estabelecido por Nietzsche e outros pelo século XIX, ou ainda, como valores da classe dominante, as variações dos costumes no tempo ou no espaço, como o também clássico exemplo da poligamia, que depende normalmente de princípios religiosos.

Por esses motivos que o termo imoral, o contrário à moral determinada num tempo e espaço, segundo a o conjunto de costumes e necessidades, depende da moral determinada no conjunto de seus princípios determinados para aquela sociedade, na construção de sua ética específica.

Para um exemplo que julgamos máximo, a ética de determinadas sociedades pode considerar o beber em calçadas algo passível de multa, prisão ou processo penal, enquanto outras podem considerar isso algo irrelevante, mas tratarem o que para as anteriores são pessoas ditas “menores” quanto a uma idade para processo penal em distintos valores, e considerar que até uma criança já alfabetizada pode ser responsabilizada por seus atos. O exemplo da pena de morte para determinados crimes é marcante, assim como condenações perpétuas após certo número de crimes ― mesmo pequenos ― medidas que são consideradas imorais para certas sociedades. Diversos aspectos do Direito Penal tem berço muitas vezes em certos princípios religiosos. O comportamento das sociedades quanto à prostituição é outro exemplo, e profundamente ligado à percepção de liberdades sobre o próprio corpo e costumes da sociedade em questão. [Oliveira & Galli] [ROBERTS]  


A ótica moral (sempre oriunda de uma ética, esta conjunto de valores) das civilizações em lidar com outros povos pode flutuar em avaliações sobre determinados aspectos, e podemos citar duas frases exemplares legadas pela História: “índios mansos, vivendo de forma paradisíaca, de acordo com a lei natural" e “são cães em se comerem e se matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem".[Multirio] 


Desses discursos filosóficos que chega-se à conclusão inescapável que a moral é relativa, e não há qualquer escape. Chegamos inclusive a poder afirmar que não há questão moral que não possa ser flagelada pelo confronto com um dilema moral proposto, fazendo com o que seja considerado imoral num tempo e espaço, noutros, com certas necessidades, possa ser necessário, e visando a sobrevivência de todos, ou o bem de uma bem clara maioria (uma certa relação com os universais de Kant e seus raciocínios, agora desnudados de uma transcendência do que seja a moral ― logo sem um absoluto ― sem um imperativo categórico), numa nova / então atualizada “classe dominante”. 


Adiante, faremos o tratamento do ateísmo e religiosidade e sua desconexão com o que seja o comportamento moral humano, seja individual, seja de grupo, seja de toda a sociedade de uma nação ou região sob influência de uma certa religiosidade específica. 

 

Referências

 

Freitas, Lia Beatriz de Lucca. (1999). Do mundo amoral à possibilidade de ação moral. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12(2), 447-458. - www.scielo.br   

 

Multirio - O índio no imaginário português - multirio.rio.rj.gov.br    

 

Oliveira, Tauane de; Galli, Tiago. A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO EM RELAÇÃO A TEMAS MORAIS CONTROVERSOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO E O PRINCÍPIO DA LAICIDADE. Revista Jurídica Direito e Cidadania na Sociedade Contemporânea. v. 1, n. 1 (2017). - revistas.fw.uri.br   


ROBERTS, Nick. As prostitutas na história. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1998.

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O limite da verdade é a realidade

 

Um rápido tratamento de uma questão epistemológica, do que seja realmente nossa liberdade ― como ela claramente se limita ― e do valor do que é “a verdade”, a partir de um antigo diálogo num grupo de uma rede social.

Temos que “relativa” é a percepção (aquilo que no fundo e por último são meus sentidos que apreendem ― as penas daquele pássaro são azuis, seu canto é “assim”, essa rocha é avermelhada, ao tato é áspera, aquela estrela é azulada, o odor desse óleo é acre, esta fruta é adocicada, etc ― e a interpretação ― o azul, o avermelhado e o azulado atribuído, a aspereza, o odor acre, o sabor adocicado.


Mas como a percepção dos sentidos é sempre duvidosa e em função das capacidades do indivíduo, existe a relatividade, e como a mente não é uma máquina lógica de estabilidade permanente, a própria interpretação também é relativa ― e como formadora de premissas, sempre duvidosa ― ou, noutras palavras, a razão é, na sua avaliação do mundo, relativa.


A reprodutibilidade entre os humanos que avaliam produz uma maior confiança ― diversas pessoas apontam que as penas de tal pássaro são azuis. Noutras palavras, o consenso de uma coletividade de razões aproxima a avaliação e interpretação do que seja aquilo que é, que é a realidade, e produz o que seja a mais confiável “verdade”, tangenciando a percepção / avaliação do homem (humanidade) do que seja o mundo. 


Por outro lado, o humano tem seus graus de liberdade, e discussões sobre mecanismos cerebrais que limitam ou permitam uma graduação dentro dessa liberdade são aqui dispensáveis, mas é evidente que ainda que o humano possa ter a liberdade de querer voar tal como um pássaro ou morcego, ou ainda qualquer inseto, com a força de seus músculos e a envergadura de seus braços, ainda que com superfícies de sustentação ampliada por implementos, na Terra, com a sua gravidade, com a sua atmosfera, ele não pode por questões que são físicas (limites físicos), o comportamento da natureza (o real de não conseguir, na melhor hipótese, ou “eu me estatelar”, na pior).



Imagem de Brazil, o filme (1985), para deixarmos bem claro que o voo

humano aqui citado é o “auto-propulsionado”, e não pode ser confundido

com um “planeio”, evitando “espantalhos” sobre a nossa argumentação.



Disso, advém a máxima do existencialistas (como Sartre), que aqui é muito adequada: “o limite da liberdade é a verdade”, eu posso desejar e ter a liberdade de fazer qualquer coisa, o que não implica em tal poder ser amparado na realização pela “verdade”, esta sim, absoluta, que é a natureza e seu comportamento e propriedades.



Leituras recomendadas


Dicionário de Filosofia ― Verdade ― sites.google.com   

Nos nossos arquivos: docs.google.com   


“A concepção de verdade foi objeto de estudo de diversos pensadores ao longo da história da filosofia, mas três particularmente exerceram forte influência: Leibniz, Kant e Husserl. Para Leibniz seria necessário distinguir dois tipos de verdade: de um lado as verdades de razão e de outro as verdades de fato.”


A concepção filosófica da Verdade. Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume set., Série 05/09, 2011, p.01-04. ― fabiopestanaramos.blogspot.com.  



"O homem pode fazer o que ele quer, mas não pode querer o que ele quer*... Não se pode querer o querer, pois o querer é procedente da vontade. A vontade é um impulso cego, escuro e vigoroso, sem justiça nem sentido."

— Arthur Schopenhauer


*Abertura do primeiro episódio da 3a temporada da série Dark (Netflix) 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Teleologia de Kant - 3

 

Mecanismo e teleologia


Na Analítica, Kant prossegue afirmando que a produção de organismos não pode ser explicada por meio de uma explicação mecânica e, em vez disso, deve ser entendida em termos teleológicos. [9] Kant declara que é "um absurdo para os seres humanos ... esperar que ainda possa surgir um Newton que possa tornar concebível até mesmo a produção de uma folha de grama de acordo com as leis naturais que nenhuma intenção ordenou" (§75, 400 ), o fato de que a produção de organismos não pode ser explicada em termos mecânicos leva a um conflito que Kant chama de “a antinomia do julgamento”. “A antinomia do julgamento” refere-se ao conflito entre a natureza e os objetos naturais sem explicação mecânica. [9]  Devemos ter como objetivo explicar tudo na natureza em termos mecânicos por meio de investigação científica e, ainda assim, alguns objetos não podem ser explicados mecanicamente e, portanto, devem ser explicados em termos teleológicos. [9]  Além disso, como a intencionalidade pode não ser suficientemente explicada por meio de mecanismos na natureza, então existe uma característica essencial que existe para objetos naturais que não pode ser explicada por essas leis naturais. [10]  Por exemplo, durante o processo ontogenético, as leis da física determinam a produção de um frango normal ou anormal. Deste ponto de vista, entretanto, como ambos surgem das leis da física, não há nada inerentemente especial sobre o frango normal e, portanto, a ideia de que o processo embriológico deve levar à produção de um frango normal é arbitrária desse ponto de vista. [10]    


A solução de Kant para "a antinomia do julgamento" consiste na afirmação de que o princípio pelo qual devemos explicar tudo em termos mecânicos e o princípio de que os objetos naturais resistem à explicação em termos mecânicos são ambos "reguladores" e não "constitutivos". [11]  O que ele quer dizer com essa afirmação é que os princípios apenas explicam como devemos investigar a natureza e não explicam o verdadeiro caráter da natureza. [11]  


Teleologia da natureza como um todo


Ao refletir sobre os organismos como propósitos, Kant afirma que somos levados além desse tópico e, portanto, refletimos sobre a natureza como um todo. [12]  Embora os julgamentos teleológicos sejam catalisados por nossa experiência do organismo, o escopo dos julgamentos teleológicos não se limita aos organismos, mas pode ser estendido à natureza como um todo, incluindo artefatos orgânicos. Kant faz duas afirmações sobre a teleologia da natureza como um todo: primeiro, que tudo na natureza tem um propósito e, segundo, que a própria natureza é um sistema de propósitos que também tem um propósito. [12]  


A natureza se apresenta com casos em que as características do ambiente de um organismo, tanto orgânicas quanto inorgânicas, são necessárias e benéficas para aquele organismo. Os rios são necessários para o crescimento da grama e, portanto, são indiretamente úteis para os humanos, pois produzem terras férteis. A grama é necessária para a agricultura, que por sua vez fornece alimento para carnívoros por meio da criação de gado. Kant fornece um argumento negativo sobre como podemos explicar este sistema sem apelar para os propósitos. [13]  A origem de um rio pode ser determinada mecanicamente e, embora a grama seja considerada um propósito devido à sua relação com ela mesma, não precisamos determinar sua utilidade relativa para outras coisas vivas a fim de compreendê-la. Kant, entretanto, raciocina que esses objetos naturais, como rios, rochas e praias, têm um propósito em um sentido relativo. Eles têm um propósito em sentido relativo, desde que contribuam para a existência de um ser vivo com um propósito interno. [13]  


Esses propósitos relativos fornecem a condição pela qual é possível para a natureza ser um sistema de propósitos onde todos os organismos e objetos naturais estão conectados teleologicamente através de um propósito relativo. [14]  A ideia teleológica desse sistema de propósitos leva tanto à ideia de propósito último / definitivo / derradeiro [letzter Zweck] da natureza quanto à ideia do propósito final [Endzweck] da natureza. O primeiro pertencente à ideia da existência de algo dentro da natureza em que todas as outras coisas existem por ela, com o último sendo a ideia de que algo existe fora da natureza para o qual a natureza existe por ela. A experiência humana não se presta a identificar qual pode ser o propósito último ou final, mas Kant argumenta que o propósito final só pode ser o homem como um agente moral. [14]   


Influências da teleologia de Kant na Biologia


A teleologia de Kant influenciou o pensamento biológico contemporâneo, particularmente com o uso de linguagem funcional pelos cientistas em sua caracterização das partes do organismo e dos processos biológicos. [4]  Os escritos de Kant sobre teleologia impactaram a biologia contemporânea ao abordar o problema de como é possível que organismos tenham funções e existam para fins biológicos sem a pressuposição da existência de um projetista divino. [15]  


Um exemplo particular de um biólogo contemporâneo influenciado pelas ideias de Kant pode ser visto em Roth (2014). A abordagem anti-reducionista proposta por Kant, de que os organismos não podem ser entendidos como compostos de partes pré-existentes, Roth (2014) argumenta que essa abordagem pode ser usada como um modelo para a biologia contemporânea. [16]  Além disso, Walsh (2006) argumenta que a caracterização de Kant dos organismos como "propósitos naturais" deve desempenhar um papel vital na explicação do desenvolvimento ontogenético e da evolução adaptativa. Além de argumentar contra a teoria de Kant de que a intencionalidade natural não é revelada por meio de um princípio objetivo da natureza, ao invés disso, diz-se que a intencionalidade dos organismos é um fenômeno natural, apelando para estudos biológicos recentes sobre auto-organização. Walsh (2006), entretanto, acredita que a ideia de Kant de que os organismos são propósitos naturais fornece explicações biológicas. [15]     



Referências


4.McLaughlin, Peter (2001). What functions explain : functional explanation and self-reproducing systems. Cambridge: Cambridge University Press. ISBN 0511012470. OCLC 51028778.


9.Quarfood, Marcel (2014-01-16), "The Antinomy of Teleological Judgment: What It Is and How It Is Solved", in Goy, Ina; Watkins, Eric (eds.), Kant's Theory of Biology, DE GRUYTER, doi:10.1515/9783110225792.167, ISBN 9783110225792, retrieved 2019-06-08


10.Huneman, Philippe (2014-01-16), "Purposiveness, Necessity, and Contingency", in Goy, Ina; Watkins, Eric (eds.), Kant's Theory of Biology, DE GRUYTER, doi:10.1515/9783110225792.185, ISBN 9783110225792, retrieved 2019-06-08


11.Allison, Henry E. (Spring 1992). "Kant's Antinomy of Teleological Judgment". The Southern Journal of Philosophy. Wiley. 30 (51): 25–42. doi:10.1111/j.2041-6962.1992.tb00654.x.


12.Goy, Ina; Watkins, Eric. Kant's theory of biology. Berlin. ISBN 9783110225792. OCLC 900557667.


13.Guyer, Paul (2005). Kant's system of nature and freedom : selected essays. Oxford: Clarendon. ISBN 0199273464. OCLC 60512068.


14.Cohen, Alix A. (December 2006). "Kant on epigenesis, monogenesis and human nature: the biological premises of anthropology". Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. 37 (4): 675–693. doi:10.1016/j.shpsc.2006.09.005. ISSN 1369-8486. PMID 17157766.


15.Walsh, D. M. (December 2006). "Organisms as natural purposes: the contemporary evolutionary perspective". Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. 37 (4): 771–791. doi:10.1016/j.shpsc.2006.09.009. ISSN 1369-8486. PMID 17157771.


16.Roth, Siegfried (2014), "Kant, Polanyi, and Molecular Biology", in Goy, Ina; Watkins, Eric (eds.), Kant's Theory of Biology, DE GRUYTER, doi:10.1515/9783110225792.275, ISBN 9783110225792, retrieved 2019-06-06 


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Teleologia de Kant - 2

 

As afirmações de Kant sobre a teleologia influenciaram tanto a biologia contemporânea quanto a filosofia da biologia. [4]    


Propositividade - característica de propósito


Kant dá sua primeira definição de fim na Crítica do Julgamento Estético: “um fim é o objeto de um conceito [isto é, um objeto que se enquadra em um conceito] na medida em que este [o conceito] é considerado como a causa do primeiro [o objeto] (o fundamento real de sua possibilidade).” (§10 / 220/105). [5] Kant caracteriza um fim como um predicado de um lugar onde, se um objeto é produzido intencionalmente por um agente, então esse objeto pode ser considerado um fim. Para Kant, um objeto é um fim, se e somente se, o conceito ao qual esse objeto se enquadra também é a causa desse objeto. [6]   

Na Crítica do Juízo Teleológico, ao falar dos fins, Kant descreve as causas “cuja capacidade produtiva é determinada por conceitos”, de modo que o conceito de objeto determina a causalidade da causa. Essa ideia de causas leva a uma definição mais complicada de um fim, que é diferente das afirmações anteriores de Kant na Crítica do Juízo Teleológico sobre a definição de um fim. O conceito de um objeto determina a causalidade da causa, pois quando um indivíduo cria um objeto, o movimento dos braços desse indivíduo de uma maneira particular causa esse objeto, mas o movimento dos braços do indivíduo é determinado pelo conceito individual do objeto. Beisbart usa o exemplo acima para mostrar como o conceito e a causa do objeto estão relacionados sob esta definição de intencionalidade. [6]     


Propósitos naturais


Kant apresenta a ideia de um propósito natural na Analítica do Julgamento Teleológico, onde argumenta que organismos como as plantas e os animais constituem um propósito natural e que são as únicas coisas naturais que o fazem. Kant caracteriza os organismos como propósitos naturais por meio de sua definição de uma afirmação de fins, "uma coisa existe como um fim natural se for a causa e o efeito de si mesma (em um duplo sentido)". [6] [DE BIANCHI] [Molina]  Para apoiar esta afirmação inicial de natural termina Kant ilustra isso por meio de um exemplo. Uma árvore pode ser considerada como um fim natural por meio de três termos, (i) ela se origina de uma árvore da mesma espécie, (ii) a árvore cresce ao receber material estranho e (iii) as partes da árvore contribuem para a função do todo. [6]  Os organismos exibem uma reciprocidade entre a parte e o todo que constitui esse organismo como um fim, visto que as partes de um organismo contribuem para a função de todo o organismo. Como o caráter do todo determina tanto a estrutura quanto a função das partes, Kant entende que essa relação significa que a árvore é a causa de si mesma. A definição inicial de Kant de fins no §10 implica que o arquétipo da intencionalidade é a criação humana, visto que um fim surge do conceito de um criador que o indivíduo planejou produzir; o fim é resultado de um design. Um problema com a caracterização de Kant dos propósitos naturais que foi abordado por ele na Crítica do Julgamento Teleológico e na literatura contemporânea é como um organismo pode ser natural e ter um fim quando o propósito é derivado do design. [7]   


Kreines (2005) observa que a caracterização de finalidades naturais também se aplica a artefatos. [7]  Os relógios também têm partes que contribuem para a estrutura e a função de todo o relógio e, portanto, essa relação causal entre as partes e o todo nos organismos também está presente nos artefatos. [7] A coerência de um propósito natural é ilusória sem reconciliar a característica natural dos organismos com seu propósito, então Kant fornece uma segunda qualificação quanto ao que significa um propósito natural, então “as partes da coisa ... são reciprocamente causa e efeito de sua origem”. Esta qualificação não é atendida por artefatos, pois as peças do relógio não são necessárias para a manutenção das outras partes do referido relógio e não são produzidas por outras partes do relógio. [7]   


Ginsborg (2001) tenta resolver esse problema de uma maneira diferente de Kant, interpretando a ideia de intencionalidade de Kant de um ponto de vista normativo. [Ginsborg, 2001]  Então, quando consideramos algo como um propósito, afirmamos que existe uma maneira específica em que deveria ser. Essa distinção normativa separa a ideia de intencionalidade de sua exigência prima facie de um designer. [8]  Consideramos órgãos como os olhos um propósito, porque eles devem ser estruturados de uma maneira que possibilite ao organismo ver. Artefatos como rochas, entretanto, não são considerados propósitos porque não há como dizer o que deveriam ser. As rochas servem a propósitos, mas não neste sentido normativo, por exemplo, podem ser usadas para construir casas, mas é arbitrário dizer que devem ser estruturadas de uma forma que lhes permita construir casas. [8]   



Referências


DE BIANCHI, SILVIA. O CONCEITO DE KANT DE TÉCNICA DA NATUREZA NA CRÍTICA DA FACULDADE DE JULGAR. Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 6, n. 1, p. 12 - 28, jan.- jun., 2011. - www.cle.unicamp.br 


Ginsborg, H. , 2001. “Kant on Understanding Organisms as Natural Purposes,” Kant and the Sciences, E. Watkins (ed.), Oxford: Oxford University Press.


Molina, E. (2010). Kant and the Concept of Life. CR: The New Centennial Review, 10(3), 21-36. - www.jstor.org 


4.McLaughlin, Peter (2001). What functions explain : functional explanation and self-reproducing systems. Cambridge: Cambridge University Press. ISBN 0511012470. OCLC 51028778.


5.Kant, Immanuel (2000). Critique of the Power of Judgment. Cambridge University Press.


6.Beisbart. "Kant's Characterisation of Natural Ends". Kant's Yearbook. - philsci-archive.pitt.edu 


7.Kreines, James (2005). "The Inexplicability of Kant's Naturzweck: Kant on Teleology, Explanation and Biology". Archiv für Geschichte der Philosophie. 87 (3): 270–311. doi:10.1515/agph.2005.87.3.270. ISSN 1613-0650. S2CID 144516516.


8.Watkins, Eric (2001). Kant and the sciences. Oxford: Oxford University Press. ISBN 0195133056. OCLC 43227305.



Ligações externas


Kant’s Aesthetics and Teleology - Stanford Encyclopedia of Philosophy - plato.stanford.edu