terça-feira, 20 de abril de 2021

Ateísmo e (a)/(i)moralidade - 2

 

Feita anteriormente a apresentação de alguns fundamentos da moralidade, da imoralidade e da amoralidade, tratemos de pontos da falácia de associação indevida apresentada.



(Uma das maiores tragédias em toda a história da humanidade 

pode ser que a moralidade foi sequestrada pela religião.)



Pontos diretos, oriundos de um antigo e até nervoso debate:


1) Ateísmo não tem relação direta alguma com um comportamento imoral, sequer, correspondentemente, há uma relação inquebrantável entre moralidade e qualquer vertente do cristianismo, ou ainda qualquer religião, seja monoteísta, seja das diversas outras naturezas das religiões existentes.


2) Sempre cuidado com frases de autores tiradas do contexto, normalmente, acaba em distorções lamentáveis. Pior ainda se acrescentadas interpretações de determinadas questões que conduzem a um discurso que afirma que o ateísmo, naturalismo ou o materialismo leva à imoralidade.


Um exemplo que já assisti é a frase:


"A natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente. Essa é uma das lições mais duras que os humanos têm de aprender." - Richard Dawkins


O raciocínio construído foi que se para um ateísta o homem faz parte da natureza, ele tem de ser então indiferente, e sabendo nós que a indiferença frente ao sofrimento alheio é um mal no comportamento humano, o humano teria de consequentemente ser mau.

A falácia mais que grosseira está em que “na natureza” tratamos de explosões de supernovas que podem levar à extinções até os muito mais comuns vulcanismos ou o comportamento dos predadores, entre inúmeros exemplos, mas não o comportamento humano, que constrói uma ética, e essa é desprovida de religiosidade como peça fundamental.


3) Dilemas morais e certas questões filosóficas, como "o ato dito hoje mau amanhã poderá ser o ato necessário" são transcendentes à questões religiosas, quase sempre, conduzindo a dilemas morais irresolvíveis, como o clássico "não mentir vs não matar".


Como são questões a ser tratadas por lógica deôntica, de ponderações de valores e julgamentos (que são de valores morais) não podem ser resolvidos nem de perto por afirmações dogmáticas, tão características das religiões.


Lembrete fundamental: Ateísmo não é de forma alguma correlato com imoralidade, assim como jamais o religioso pode ser amalgamado com moralidade, pois o humano não pode ultrapassar o que o humano é. “Nada no humano suplanta o humano.”


Até porque sequer o afirmar-se religioso seja correlato com o afirmar-se teísta, ou mesmo deísta, vide determinadas correntes do Budismo e do código moral que é o Confucionismo.



Extras


1


O dilema “mentir e não matar”


“Imagine o seguinte caso. Uma pessoa está fugindo de um assassino e pede para se esconder em sua casa. Você aceita e logo em seguida chega o assassino e pergunta se você não viu a pessoa que acabou de esconder. O que você deveria fazer? Mentir para o assassino, dizendo que a pessoa não se encontra ali, ou falar a verdade?


A maior parte das pessoas diria: devemos mentir para salvar uma vida. Porém Immanuel Kant (1724-1804), um dos maiores filósofos da história, pensa que deveríamos falar a verdade, inclusive nesse caso. Naturalmente, o que fez com se tornasse conhecido e respeitado não foi apenas defender essa resposta que vai contra o senso comum. Ele tinha uma teoria moral bastante sofisticada para dizer isso.” - filosofianaescola.com - A mentira segundo Kant 


Uma análise muito mais completa do discurso filosófico de Kant pode ser visto em: 


Maria José da C. Souza Vidal. Sobre o problema da mentira na filosofia prática de Kant. Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia das Universidades Federal do Rio Grande do Norte/ Federal da Paraíba e Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Filosofia. Natal – RN, março de 2015. 


2


O dilema do “estupro necessário”


Imaginemos um cenário de ficção científica distópica, catastrofista, na qual um vírus tenha afetado o cérebro de todas as mulheres do planeta de maneira que elas tenham repulsa por sexo heterossexual e gravidez.

Consideremos que uma tecnologia de gestação in vitro não estivesse desenvolvida.


Uma condição hipotética dessas levaria a humanidade inexoravelmente à extinção. (Claramente um “universal de Kant”.)

Uma observação: um cenário similar de extinção inexorável pela incapacidade de reprodução das mulheres é apresentado no filme distópico Filhos da Esperança (Children of Men, 2006), dirigido por Alfonso Cuarón, mas saliente-se que ali não há uma modificação mental do sexo feminino, e sim uma incapacidade biológica que o roteiro deixa em aberto a natureza e causas. 


Assim, voltando ao nosso cenário hipotético, seria necessária a fertilização de mulheres, digamos “forçadamente”, a manutenção vigiada de sua gravidez, até sob efeito de sedação, para prover a humanidade de uma escala de nascimentos visando manter nossa existência como espécie até o momento do desenvolvimento necessário de uma capacidade de reprodução humana artificial, o cenário da reprodução humana de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Dependendo da definição do termo, aqui temos a clara necessidade do estupro, além do acréscimo da perda da liberdade pelo bem maior.

Um cenário similar, ainda que com nuances por um lado mais drásticas, de uma sociedade desigual, escravagista e totalitária é apresentado no universo ficcional do romance distópico The Handmaid's Tale, no Brasil “O Conto da Aia” de 1985 da autora canadense Margaret Atwood, que rendeu uma versão em série de TV.