segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Epicuríadas - 1


(Epicuríadas: grosseiramente, lutas por Epicuro)

Abrindo uma série com anotações sobre os diversos debates que participo, apenas assisto e até “sofro” sobre o Paradoxo de Epicuro.

“Seria Deus desejoso de prevenir o mal mas incapaz? Portanto não é omnipotente. Seria ele capaz, mas sem desejo? Então é malévolo. Seria ele tanto capaz quanto desejoso? Então por que há o mal?” - Charles Bray, em “A Filosofia da Necessidade”, 1863, citando Epicuro como autor sem mencionar fontes.

Na forma que julgo mais sintética:



Deus quer prevenir o mal, mas não consegue?
Então ele não é onipotente.
Ele consegue, mas não quer?
Então ele é malevolente.
Ele quer e ele consegue?
Então por que o mal acontece?
Ele não quer e não consegue?
Então porque chamá-lo de Deus?

O problema do Mal

Nos típicos infográficos de cores berrantes de autores soltos pela internet:
Mas…

Não há texto escrito de Epicuro que estabeleça que ele realmente formulou o problema do mal dessa maneira, e é incerto que ele era o autor. Uma atribuição a ele pode ser encontrada em um texto datado de cerca de 600 anos depois, no tratado do teólogo cristão do século III de Lactâncio (Lactantius) sobre a Raiva de Deus, onde Lactâncio critica o argumento. O argumento de Epicuro, tal como apresentado por Lactâncio, na verdade, argumenta que um deus que é todo-poderoso e todo-bom não existe e que os deuses são distantes e não estão envolvidos com as preocupações do homem. Os deuses não são nossos amigos nem inimigos.

en.wikipedia.org - Problem of evil - Epicurus

Fiquemos com o texto do grande David Hume:

Epicurus’s old questions are yet unanswered. Is he willing to prevent evil, but not able? then is he impotent. Is he able, but not willing? then is he malevolent. Is he both able and willing? whence then is evil?

Em tradução nossa:

“As velhas perguntas de Epicuro ainda não foram respondidas. Ele está disposto a prevenir o mal, mas não é capaz? Então ele é impotente. Ele é capaz, mas tem não tem vontade? Então ele é malévolo. Ele é capaz e disposto? Por onde então está o mal?

en.wikipedia.org - Epicurus - Epicurean paradox

Algumas outras observações

FABIO GOULART; EPICURO: Sua Teologia, posição na história e uma crítica à sua Doutrina - www.filosofiahoje.com .

Nos nossos arquivos:

FABIO GOULART - EPICURO - Teologia posição na história e crítica à sua Doutrina - docs.google.com

Destaquemos:

“Epicurismo não significa ateísmo em stricto sensu. Epicuro era um antiteísta, pois fazia oposição à religião popular (os antigos deuses gregos) e a religião astral (são os signos do zodíaco que muita gente crê até hoje). Ao contrário das religiões da época, as divindades eram para Epicuro criaturas sem inveja, sem maldade, sem desejo, sem vinganças, etc. Ele também não acreditava em destino ou qualquer tipo de vontade divina; para este filósofo os deuses não se intrometem no mundo físico. Por fim, em seus textos às vezes ele fala em divindades (theoí) e em outras em Deus no singular (Theós), assim sendo não podemos afirmar que ele era monoteísta ou politeísta. Sua visão é muito mais próxima ao que hoje chamamos de Deísmo.“

Também:

Romero Venancio; EPICURO, MARX E A CRÍTICA DA RELIGIÃO: ALGUMAS NOTAS (EPICURE, MARX AND RELIGION’S CRITICISM: SOME NOTES); Religare 7 (1), 51-57, Março de 2010, 51; Universidade Federal de Sergipe – UFS - periodicos.ufpb.br  

Everton Rocha; MORTE VOLUNTÁRIA E IMORTALIDADE, DUAS FACES DO DESEJO EM TORNO DA MORTE NO PENSAMENTO DE EPICURO
; SABERES, Natal – RN, v. 1, n.4, jun 2010


Extras

Da felicidade

Ainda que com ressalvas das origens “Espíritas” texto a ser citado, vale a abertura e ainda mais guardar-se o texto:

“Epicuro está entre aqueles sábios pouco compreendidos ou mal interpretados. Ainda é comum encontrarmos quem confunda seu pensamento, de uma austeridade quase ascética, com o hedonismo puro e simples. O pensamento epicurista ensina uma modalidade de prazer que não se confunde com a disciplina masoquista.
Na concepção de Epicuro, a felicidade é decorrência do prazer; de um prazer que nasce da saúde do corpo e da serenidade do Espírito. Este estado de alma é atingido - segundo seus ensinos - pelo conhecimento e controle dos desejos, dentre outras posturas diante da vida.
A sua Carta sobre a felicidade, dirigida a um de seus mais fiéis discípulos, - uma das três que sintetizam sua doutrina - deixa bem clara a sua concepção de prazer, simultaneamente físico, intelectual, estético e espiritual.” - A felicidade é possível - Paulo R. Santos

Para uma cópia do artigo original: [ A felicidade é possível - Paulo R. Santos ]


Carta sobre a felicidade (a Meneceu)
Epicuro (341-270 a. C.)

"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou, ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.

Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.

Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem-aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.

Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.

Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.
Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.

Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aquele ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.

O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; viver não é um fardo e não-viver não é um mal.

Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades.**

Se ele diz isso com plena convicção, por que não vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.

Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.

Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.

Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.

É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro  e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha ou recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo.

Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.

Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.

Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.

Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.

Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.

Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos.

De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia ; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.

Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.

Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?

Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.

Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.

Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais."


Téognis
**Da origem da frase marcada acima.
Teógnis de Mégara - es.wikipedia.org - Teognis

Téognis / Fragmentos - greciantiga.org

Fr. 1.27-30

Por ser teu amigo, ó Cirno, é que te vou dar estas normas, que eu mesmo,
sendo criança, aprendi com homens de bem.
Sê sensato, não busques honras, mérito, abastança,
em actos vergonhosos ou injustos.

Fr. 1.425-8

De todas as coisas, a melhor para os homens é não ter nascido
nem ter visto os raios do penetrante sol.
E, uma vez nascido, transpor depressa as portas do Hades
e jazer coberto com muita terra.

Fr. 1.615-6

Homem todo feito de virtude e de moderação,
não existe um só que o sol ilumine.


Contra tolas dores de metafísicas

Continuo “ao invés de me preocupar com metafisicas menores, preferindo a simples felicidade”*, por exemplo ficando com poema de Fernando Pessoa sobre o tema – Deus.


Deus

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro,
Dizendo-me Aqui estou!

(Isso é talvéz ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Como o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo ávores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como ávores e montes e flores e luar e sol.

Alberto Caeiro
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

Ou ainda as estrofes:

[...]
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
[...]

Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada

*A frase normalmente é dita: “Preocupei-me com a metafísica até que encontrei a felicidade.”