…e nenhuma moral estava lá.
“Olhei para o céu, através da fumaça espessa com gordura humana, e Deus não estava lá. A fria, sufocante escuridão persiste para sempre e estamos sozinhos. Vivemos nossas vidas, por falta de algo melhor para fazer. Inventamos um motivo depois. Nascemos do esquecimento; temos filhos, destinados ao inferno como nós, caímos no esquecimento. Não há nada mais.
A existência é aleatória. Não há um padrão, exceto aquele que imaginamos após contemplá-la por tempo demais. Nenhum significado, exceto aquele que escolhemos impor. Este mundo sem direção não é moldado por vagas forças metafísicas. Não é Deus quem mata as crianças. Não é a sorte que as esquarteja ou o destino que as dá de comer aos cães. Somos nós. Só nós. As ruas fediam com o fogo. O vazio respirava pesado em meu coração, vertendo minhas ilusões em gelo, despedaçando-as. Renasci nesse momento, livre para rabiscar meu próprio padrão neste mundo moralmente vazio.”
Rorschach, Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons
Gemini da Google e Francisco Quiumento
A Fragilidade da Moral Objetiva Diante dos Dilemas Morais
A visão desoladora de Rorschach, em sua reflexão sobre a ausência de um Deus ou de um propósito intrínseco em um mundo de sofrimento, ecoa uma questão central na filosofia moral: a existência de padrões de certo e errado que transcendem a convenção humana. Enquanto a voz do vigilante reflete um universo 'moralmente vazio', o debate filosófico se debruça sobre a validade da moral objetiva, um dos pilares da ética filosófica. Em sua essência, a moral objetiva postula que existem padrões de certo e errado que são válidos universalmente, independentemente de opiniões individuais, culturais ou sentimentais. Essa visão, defendida por teorias como a Lei Natural, o Realismo Moral, fundamentos teológicos e o Intuicionismo Ético, opõe-se diretamente ao relativismo e subjetivismo moral, que veem a moralidade como algo construído ou inerente a cada indivíduo ou sociedade. Contudo, a verdadeira prova de fogo para a ideia de uma moral objetiva reside na análise de dilemas morais, situações hipotéticas que forçam a colisão de valores e a quebra de preceitos aparentemente inabaláveis.
O Dilema da Tortura de Bebês: Uma Crítica à Sua Aplicabilidade Prática
Defensores da moral objetiva frequentemente empregam exemplos extremos para ilustrar a universalidade de certos princípios morais. O argumento de que "jamais foi moral torturar bebês por diversão" é um clássico nesse sentido. A repulsa quase unânime a tal ato, em diversas culturas e épocas, é apresentada como evidência de uma verdade moral inerente, que transcende a subjetividade humana. Para esses defensores, a ideia de que a tortura de bebês por puro prazer poderia ser moralmente neutra ou aceitável em algum contexto é absurda e inaceitável.
No entanto, a utilidade prática desse exemplo para o debate sobre a moral objetiva é questionável. Atos como a tortura de bebês por diversão são tão hediondos e distantes das escolhas morais cotidianas que raramente, ou nunca, se apresentam como opções reais em decisões éticas. Ao invocar uma situação tão extrema, corre-se o risco de apelar excessivamente à emoção, obscurecendo a análise racional e dificultando o debate sobre dilemas mais complexos e multifacetados. A força de um princípio moral deveria ser testada em sua capacidade de guiar ações em cenários onde os valores realmente entram em conflito, e não em situações onde a condenação é praticamente universal e inquestionável. Exemplos mais realistas, como a permissibilidade de tirar uma vida em casos de guerra ou legítima defesa, já demonstram a complexidade e a contextualidade da moralidade.
O Dilema da Ficção Científica: Um Desafio Radical Aos Valores Absolutos
Para aprofundar a refutação da moral objetiva, é possível construir dilemas que forçam a reavaliação de preceitos morais mesmo em seus fundamentos mais extremos. Um cenário de ficção científica pode servir como um potente laboratório para essa análise: imagine um vírus devastador que ameaça a extinção da humanidade. A única salvação reside em uma substância não sintetizável, produzida pela dor de bebês, combinada com outra substância gerada pelo prazer sádico de indivíduos com uma mutação específica.
Essa premissa, inspirada de forma surpreendente na animação "Monstros S.A." (2001), coloca nossos valores mais básicos em rota de colisão. Ordinariamente, infligir dor a bebês e o prazer sádico são universalmente condenáveis. Contudo, em um cenário onde a sobrevivência da espécie humana depende intrinsecamente desses atos, somos forçados a questionar a absoluta imoralidade deles. A lógica consequencialista emerge: se a extinção da humanidade é o mal maior, atos que seriam abomináveis em outras circunstâncias poderiam ser vistos como um "mal menor" necessário para evitar o desastre final.
Essa situação desafia até mesmo os "universais" de Kant, que defendem tratar a humanidade sempre como um fim em si mesma, e nunca como um mero meio. Se a sobrevivência da espécie depende de usar bebês e indivíduos com tendências sádicas como "meios" para um fim maior, então a própria noção de um imperativo categórico inquebrantável é posta à prova. O dilema força a pergunta: existe um valor moral tão absoluto que jamais pode ser violado, mesmo para evitar a aniquilação de toda a espécie? A dificuldade em responder a essa pergunta com um "sim" inequívoco sugere que a moralidade é, em última instância, mais complexa e contextual do que a ideia de valores absolutos nos permite admitir.
Conclusão
A análise de dilemas morais, especialmente aqueles que transcendem os cenários mais óbvios e apelam para situações existenciais extremas, revela as profundas fissuras na concepção de uma moral objetiva. O exemplo da tortura de bebês por diversão, embora visceralmente repugnante, falha em abordar as complexidades da tomada de decisão moral em contextos de crise genuína. Em contraste, dilemas como o do vírus apocalíptico, onde atos inerentemente condenáveis se tornam o preço da sobrevivência, ilustram de forma poderosa que a moralidade pode ser inerentemente relativa às circunstâncias, e que a busca por verdades morais absolutas pode ser uma quimera diante da crueldade das escolhas existenciais.
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